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Bruno Carvalho

Bobby and the good-bad trip


São Francisco, outono de 1967.



Aquele era mais um fim de tarde alaranjado na capital do amor livre. O Sol se punha enquanto, vez ou outra, um grupo qualquer de bichos-grilos-andarilhos passava pelas esquinas das ruas Haight e Ashbury. Para os hippies não havia lugar melhor para declamarem seus mantras e infinitos manifestos pessoais. O clima de liberdade que o extremo oeste americano transmitia era tudo o que os defensores da contracultura queriam. Os casarões antigos onde as turmas montavam centenas de comunidades eram o suprassumo de toda ideologia. Nas ruas, Kombis psicodélicas e nuvens de fumaça acima das cabeças dos hipongas compunham um dos cenários mais lisérgicos que alguém poderia ver. The Summer of Love estava longe de acabar, e todas aquelas pessoas coloridas só queriam ser livres.


Foi ali, parado numa das esquinas, embaixo das placas com os nomes das duas ruas, que Bobby tomou sua décima segunda viagem do dia. Ele, como o bom hippie que era, não estava nem aí para a guerra que estourava por causa da América. Tudo o que queria era ser dono de suas próprias escolhas. Enquanto esperava a trip começar, entrou na sua Kombi Type 2, ano 66, coloridíssima, ao melhor estilo flower power, estacionada logo à sua frente, para observar o movimento da rua Haight. Sentou-se no banco do motorista e ligou o toca-fitas. Já estava pensando em tomar um segundo ponto quando a música chegou ao refrão: “Lucy in the sky with diamonds...”, mas foi aí que tudo começou a ficar estranho.


A fita, que era dos Beatles, de repente passou a tocar "Break on Through (To the Other Side)", dos The Doors. À medida em que o som aumentava, as cores à sua volta ficaram ainda mais vibrantes. Tudo era convidativo demais, e tudo lhe chamava para conhecer o desconhecido. Bobby permanecia fisicamente dentro da Kombi, mas seu espírito não estava mais ali. Quando percebeu que o mundo não era mais o mesmo, teve certeza de que o que sentia era parecido com o que sentiu Santa Teresa em seu êxtase, embora não fosse religioso. Depois dos primeiros momentos orgásmicos, Bobby ouviu algo que lhe chamou a atenção: um carro vinha ziguezagueando às suas costas, mas ele não sentiu medo. Quando o veículo parou ao lado da sua Kombi, ele pôde ver quem o dirigia: Janis Joplin. Era uma Mercedes-Benz W113 250 SL preta. Ao vê-la, Bobby ficou sem reação. Aquilo era quase tão extasiante quanto tomar mescalina. Ela, por outro lado, parecia estar tão à vontade quanto se estivesse nua numa praia do Brasil. Seu sorriso contagiante era o convite perfeito para Bobby se aventurar numa trip das boas, e foi o que ele fez.


Logo quando la Joplin deu a partida, ele a seguiu. A conhecida rua Haight já não era mais a mesma fazia algum tempo, mas agora ela se transformara num túnel infinito de cores mais-que-vivas por onde Bobby perseguia a Mercedes de Janis em alta velocidade. A música continuava a tocar, mas o som começava a falhar. As cores desse túnel se esticavam no caminho que ficava atrás e adiante dos carros. A Kombi estava a pouco menos de seis metros de alcançar o conversível chic da cantora e Bobby não parava de acelerar. Quando os carros finalmente estavam lado a lado, ele tentou gritar e perguntar o que significava aquilo tudo, mas foi impedido por uma grande explosão de luz branca que mais parecia uma bomba nuclear estourando bem à sua frente. A música parou. A Kombi desligou. Bobby, que ainda não entendia nada, agora é que entendia menos ainda. Passado o clarão, ele olhou mais uma vez à sua direita para ver se o carro de Janis ainda estava lá, mas não estava. Quando tentou religar sua caranga, sentiu-se fraco e desmaiou. Agora tudo estava preto.


Bem distante, Bobby pôde ouvir o som inconfundível da guitarra de Jimi Hendrix, mas não conhecia aquela música. Percebeu um certo burburinho vindo da mesma direção de onde surgiam as notas de "Voodoo Child". Apesar de sentir medo e da iminente sensação de que o mundo embaixo de seus pés havia desabado, abriu os olhos. Estava tonto. Caído numa calçada que não sabia qual, procurou pelo lugar de onde vinha a música e viu que era do outro lado da rua em que estava, numa esquina. Ali havia uma pequena sorveteria chamada Ben & Jerry’s, cuja fachada, que na parte de cima denunciava seu nome, era pintada com tons de roxo e azul. Havia também o desenho de uma vaca segurando um sorvete, enquanto motivos tipicamente hippies a cercavam. Mas o som não saía dali. Ele vinha de um apartamento acima da sorveteria.


Bobby caminhou até o portão cinza do pequeno prédio de três andares que ficava logo depois da entrada da Ben & Jerry’s. Haviam pessoas entrando e saindo a todo instante. Todas excitadíssimas e segurando uma espécie de bloco de notas tecnologicamente avançado nas mãos. As roupas que elas vestiam lembravam às que a turma do Bobby costumava usar, só que mais novas, etiquetadas e cuidadosamente alinhadas. A essa altura a música já era outra e Bobby não fazia ideia de quem a cantava, mas parecia gostar. Foi então que teve a brilhante ideia de perguntar para alguém que lugar era aquele e o que significava aquilo tudo. O primeiro que passou à sua frente foi a vítima. Era um moço bonito de cabelos rebeldes, estilo Jim Morrison, que tinha acabado de sair do prédio. Usava calça jeans e uma camiseta que imitava a técnica do tie dye, e também carregava um desses blocos de notas esquisitões. Para não parecer inconveniente, Bobby foi discreto:


– Com licença, que rua é esta?


O moço olhou para a sua cara, soltou um risinho irônico e respondeu:


– Rua Ashbury.


Bobby ficou ainda mais confuso, e o rapaz parecia ter percebido, mas não se importava muito, por isso deu as costas e saiu andando. Simplesmente não era possível que a mesma rua Ashbury em que Bobby havia entrado em sua Kombi momentos antes agora estivesse tão diferente. Sem entender, e antes que o rapaz se afastasse demais, ele o seguiu e o cutucou. Ríspido, o jovem perguntou o que aquele ser perdido queria.


– Que música era aquela que estava tocando? Era do Jimi Hendrix, não era?


– Sim, era do Jimi Hendrix, "Voodo Child", por quê? – Respondeu o rapaz impacientemente.


– Voodoo Child? Quando ele gravou essa música?


– Sei lá, talvez 1968, 1969... Em algum momento por aí. Mais alguma coisa?


Bobby sentiu seu coração gelar e deu um passo para trás. Num momento ele estava em 1967, agora, ao que tudo indicava, estava no futuro. Ficou pálido e o rapaz percebeu que algo não estava bem com o desconhecido.


– Você está bem, cara? – Perguntou o jovem, que agora parecia estar preocupado.


– Não – respondeu Bobby engolindo em seco. – Quem é o presidente?


– Donald Trump. Cara, quer que eu chame uma ambulância? Ou, quem sabe, um baseado?


– Um baseado cairia bem – respondeu Bobby, agradecendo aos céus pelo cigarro que estava prestes a ganhar.


O jovem parou totalmente o que fazia no seu bloco de notas mágico e procurou nos bolsos um cigarro para dar a Bobby. Somente quando acendeu e deu o primeiro trago, foi que ele pôde se sentir um pouco mais aliviado.


– Está melhor? – Perguntou o rapaz, agora mais simpático.


– Sim, muito obrigado. Qual o seu nome?


– John, e o seu?


– Bobby.


Parou um pouco, pensou e decidiu que era melhor fazer logo a pergunta fatal:


– Ei, John, só por curiosidade, em que ano nós estamos? – Perguntou, mesmo temendo a resposta.


– 2017. Tem certeza de que só um baseado vai resolver?




São Francisco, outono de 2017.



Agora é que o mundo realmente parecia ter se dissolvido. Como seria possível, num momento estar viajando de lisérgicos dentro de sua Kombi e, no outro, acordar cinquenta anos no futuro? Bobby, por um segundo, sentiu medo, mas depois passou a acreditar que aquilo não era real e, seguindo a filosofia de “viver no momento”, achou por bem se inteirar das novidades do novo universo. "If you can't beat them, join them". Sem medo de parecer o cara mais louco que John já havia visto, Bobby começou a acompanhar seus passos. Ele desandou a fazer um monte de perguntas cujas respostas poderiam ser óbvias, enquanto seguia o rapaz até a rua Page.


– O que é esse negócio que você fica mexendo toda hora? – Perguntou Bobby apontando

para o bloco de notas esquisito de John.


– Cara, você é muito doido mesmo! Isso – disse, levantando o aparelho no ar – é o meu

celular.


– Celular? E para que serve?


– Para se comunicar, ligar para as pessoas, acessar a internet... sabe, coisas assim.


Não, Bobby não sabia o que significavam “coisas assim”, muito menos “internet”, mas achou melhor não se prender a isso, haviam coisas mais importantes que ele queria saber. Como, por exemplo, o porquê de aquele ano ser 2017 e ainda tocar Jimi Hendrix e muitas pessoas se vestirem à la hippies, embora Bobby tivesse certeza absoluta de que quase todo mundo ali sequer conhecesse os ideais defendidos pela contracultura, porque ele estava lá quando o manifesto foi escrito com cinzas de marijuana e assinado com fluídos de amor numa orgia cosmológica.


Era só olhar para o tipo das pessoas para saber isso: rapazes e moças que pareciam se orgulhar de fumar maconha ao ar livre enquanto faziam o tipo chapadões desregrados/rebeldes sem causa. Elas com bolsas de grife – e, se duvidasse muito, aparecia alguma com um chihuahua a tiracolo – e eles, pobres coitados, que tentavam ser uma metamorfose de David Gilmour com Mick Jagger. Muitos ali se pegavam, mas ainda existia o amor livre? Todos podiam fazer o que bem entendessem. Podiam fumar, usar drogas, saírem do armário, serem feministas. Mas sabiam quem havia lutado por tudo isso? Bobby sentia que o vazio era a única coisa que preenchia aquele lugar tão cheio de gente. Aquelas pessoas todas tinham um quê de “mamãe, olhe, sou hippie!”. Sentiu-se triste, mas sabia que, no mínimo, a luta não tinha sido em vão.


Ele estava certo de que não contaria a ninguém sobre o possível fato de ser um viajante do tempo, por isso não se importava nem um pouco com a aparência que passava ao seu novo conhecido. Curioso com toda a situação em que se encontrava e querendo saber qual era a daqueles jovens tão diferentes dos que estava acostumado, Bobby perguntou a John qual a relação deles com os hippies, ao que John respondeu:


– Nós somos os novos hippies, somos garotos sujos.


Nesse momento Bobby não pôde conter a risada. Se chamavam aquelas pessoas de sujas, mesmo estando tão bem arrumadas, cheirosas e com bugigangas tecnológicas, o que diriam dele e seus amigos em 1967? É certo que a história de que os hippies são sujos e não tomam banho não é verdade, mas na época em que Bobby estava acostumado a viver, pessoas como ele, se fosse preciso, dormiriam até na rua. Eles não ligavam para a tecnologia e os bens materiais. Suas roupas eram tingidas artesanalmente, e não compradas em lojas famosas. Só buscavam estar conectados uns com os outros, e os outros e a natureza, lutando pacificamente para o bem maior. Por isso não entendia toda aquela glamorização em torno de algo que originalmente ia contra o glamour. John não se importou com a risada. Para ele, Bobby era só um doido qualquer.


Para ter um contexto histórico daquele momento imaginário que jurava que uma hora ou outra iria acabar, achou bom saber da política norte-americana naquele momento, e ficou espantado com o perfil descrito por John do novo presidente. Para Bobby, embora estivesse cético quanto à toda aquela suposta realidade pela qual sua alma vagava, era evidente que uma guerra estouraria a qualquer momento, e que talvez isso fizesse com que aquela juventude metida à transviada revisse seus conceitos e passasse a lutar por alguma causa digna. Nesse momento teve certeza de que o lema “peace and love” é imortal e caminhará com a humanidade até seu fim.


Quando chegaram à esquina da Ashbury com a Page, Bobby fez uma última pergunta a John antes que ele entrasse no táxi:


– Depois da música do Hendrix, que música era aquela que estava tocando?


"What’s Up", do 4 Non Blondes. Preciso ir agora. Foi bom te conhecer, maluco! Até qualquer hora! – Disse enquanto entrava no carro.


Bobby ficou parado, olhando o táxi ir embora. Olhou para o céu e perguntou para os deuses em que acreditava o que significava aquilo tudo, mas, como era de se esperar, não aconteceu nada, por dois minutos. Quando já ia voltando à rua Haight, escutou o mesmo barulho de quando Janis Joplin lhe apareceu. Lá vinha ela mais uma vez, montada em sua Mercedes-Benz, agora na rua Page, e parou bem na sua frente. O mesmo sorriso, e Bobby entendeu que deveria entrar no carro.


Já no banco do carona, as cores voltaram a se transformar. Tudo parecia tinta escorrendo, como uma pintura de giz de cera no chão quando chove. Ele olhou para ela e tentou lhe perguntar algo, mas ela levantou o dedo indicador da mão direita, colocou sobre seus lábios e pediu silêncio com o mais doce “shhh” que ele já havia escutado. Ele aquiesceu e ela ligou o toca-fitas. A música que começou a tocar era a mesma que Bobby ouviu no apartamento em cima da sorveteria. Os pequenos prédios e carros a sua volta se desmanchavam pouco a pouco. A rua se transformara numa enorme poça cinza.


Quando Linda Perry gritava dentro do som sua súplica por uma revolução, Janis ligou o carro, cantou pneu e saiu em disparada rumo ao nada que havia se transformado o lugar. À medida em que a música ia acabando, o carro ia perdendo velocidade. Quando parou totalmente, Janis se virou para ele, se aproximou e o beijou. Era puro êxtase, mais uma vez. Quando ela o largou, se afastou devagar, sorriu e acenou. Bobby viu Janis desaparecer no ar como fumaça, depois foi a vez do carro, e lá estava ele, flutuando no nada, sem saber o que fazer. Foi então que sentiu uma forte fisgada no peito. Depois outra, e outra. Lá pela quinta fisgada, Bobby perdeu as forças e sentiu que algo o puxava para fora de seu corpo. Desmaiou mais uma vez.


Quando acordou, estava num hospital, deitado numa maca, com tubos para todos os lados. Sentia uma fraqueza e uma dor indescritível no peito. Respirava por aparelhos. Havia várias pessoas à sua volta. Um médico segurava um par de desfibriladores nas mãos. Viu alguns de seus amigos um pouco mais afastados e percebeu que tinha voltado ao seu lugar no tempo. Eles o olhavam aflitos. Bobby percebeu que a coisa era séria. Depois que a equipe se afastou, viu que o médico que segurava os desfibriladores disse algo ao seu amigo mais próximo, George, mas não conseguiu ouvir o que era, só entendeu que não era bom. George se aproximou e, segurando as lágrimas, perguntou:


– O que você fez, Bobby McGee?


Bobby, sem entender, tentou falar, mas não conseguiu. George e os outros amigos se sentaram em volta da cama em que ele estava deitado. Todos choravam baixinho. Passaram a noite junto do amigo. Pela manhã, quando a luz viva do sol de São Francisco passou pela janela do quarto onde eles estavam e os acordou, eles viram que o inevitável havia acontecido: Bobby estava morto.


Escute minha playlist especial para este conto:




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